Artigos

Plataforma em Chamas: Momento de Revisar Critérios de Segurança em Ressonância Magnética

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Há riscos potenciais no ambiente de ressonância magnética (RM) não somente para pacientes, mas também para seus acompanhantes, para as equipes de profissionais de saúde, de limpeza, de manutenção, de segurança, entre outros. Um acidente fatal recente por disparo de arma de fogo dentro da sala de exame de RM, amplamente divulgado pelas diversas mídias, causou consternação e grande preocupação em todos os profissionais responsáveis em prevenir que eventos adversos aconteçam no ambiente da Radiologia. Denomina-se esse tipo de evento grave como “Plataforma em Chamas”, uma referência à magnitude da importância de um incêndio de grandes proporções em uma plataforma de petróleo. Além das atitudes tomadas para mitigar as perdas materiais e humanas que o acidente provocou, emerge da tragédia uma oportunidade de revisão dos critérios de segurança de tal forma que tal evento nunca mais aconteça.

Seguem alguns tópicos para discussão, direcionados apenas para as questões de segurança em RM, sem avaliar aspectos de responsabilização penal que saem do escopo deste artigo.

Evento Grave de Notificação Compulsória

Entre 2009 e 2011, o National Quality Forum (NQF) dos Estados Unidos divulgou, e posteriormente ampliou, uma lista de Eventos Graves de Notificação Compulsória (do inglês Serious Reportable Events) (1). Trata-se de eventos adversos considerados inadmissíveis em ambientes de Assistência à Saúde em geral, sejam hospitais ou serviços ambulatoriais, por serem graves, amplamente preveníveis e causadores de danos importantes ou fatais aos pacientes ou às equipes provedoras dos serviços de saúde. São também chamados Never Events porque nunca deveriam acontecer.

A lista do NQF inclui apenas um evento adverso que é específico para a Radiologia: morte ou injúria grave de paciente ou de membro da equipe causada pela introdução de objeto metálico dentro da sala de exame de RM. Porém, Serviços de Diagnóstico por Imagem também devem estar atentos à prevenção de vários outros eventos adversos graves, alguns deles listados abaixo (2,3,4,5).

 

 

No Brasil, a RDC 36/2013 da ANVISA é a que institui ações para a segurança do paciente em serviços de saúde. Esta legislação requer que todos os eventos adversos, graves ou não, ocorridos em serviços de saúde sejam submetidos à autoridade sanitária, sendo os de óbito submetidos em até 72 horas a partir do ocorrido (4). A nota técnica nº 05 de 2019 GVIMS-GGTES-ANVISA, que fornece orientações gerais para a notificação de eventos adversos relacionados à assistência à saúde, descreve que o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) priorizará a investigação detalhada dos Never Events e óbitos (5).

As listas completas dos Never Events pelo NQF e pela ANVISA podem ser acessadas nos seguintes links:

Campo Magnético e Forças Translacionais

O aparelho de ressonância magnética, que será denominado a partir de agora como magneto, produz um campo magnético que é milhares de vezes mais intenso que a gravidade da Terra. O campo magnético é silencioso e permanente, mesmo quando a energia elétrica da sala está desligada. Ele pode se estender além dos limites da sala de exame, porém, aplicam-se escudos ativos ou passivos de forma a concentrar sua força nas proximidades do magneto. Dessa forma, em uma região distante alguns metros do magneto, variando para diferentes equipamentos, a força do campo magnético produzido pelo magneto se assemelha à força do campo magnético da Terra, a chamada linha de 5 Gauss. Nessa região, um objeto ferromagnético solto tende a cair ao solo pelo efeito da gravidade da Terra.

Porém, o gradiente de campo magnético espacial (GCME) aumenta de forma exponencial quanto maior a proximidade das margens do magneto. O GCME produz forças atrativas de deslocamento, denominadas translacionais, sobre objetos ferromagnéticos. Nas proximidades do magneto, um objeto ferromagnético invariavelmente será atraído pelas forças de translação, seja ele uma caneta, um grampo de cabelo, um torpedo de oxigênio ou uma arma de fogo, com intensidade que depende diretamente da geometria, massa, dimensões e das propriedades ferromagnéticas do objeto.  Ninguém consegue segurar um objeto ferromagnético de atraído pelo magneto, que, em seu trajeto pode atingir pessoas ou mesmo danificar equipamentos.

Zonas de Segurança em Ressonância Magnética

O American College of Radiology (ACR) estabelece as zonas de segurança para o ambiente da Ressonância Magnética (6,7,8). A zona 1 é a área de circulação geral no serviço. A zona 2 é onde o paciente é recebido no setor de RM e encaminhado para entrevistas e vestiários. A zona 3 é a antessala de exame, onde o paciente espera já com avental apropriado. A zona 4 é onde fica o magneto.

As zonas 3 e 4 são obrigatoriamente livres de objetos ferromagnéticos. As quatro zonas de segurança devem ser claramente delimitadas de tal forma a garantir que apenas pessoal autorizado e dispositivos seguros para o ambiente de RM entrem nas zonas de restrição 3 e 4. O acesso de pessoal não treinado nessas zonas de restrição só pode acontecer após criterioso rastreamento de segurança e tendo um membro treinado da equipe ao seu lado.

Recomenda-se que avisos e barreiras físicas impeçam o livre acesso à zona 4. Também se recomenda a instalação de detectores ferromagnéticos na porta de entrada da zona 4 e/ou o uso de detector ferromagnético portátil, representando uma barreira a mais para a entrada de objetos inapropriados ao ambiente de RM.

Regras para Entrada de Acompanhantes na Zona 4

A legislação brasileira permite que crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.090) e idosos a partir de 60 anos (Estatuto do Idoso – Lei nº 10.741) tenham direito a um acompanhante durante procedimentos médicos em geral. Estão em tramitação projetos de lei para estender esse direito a mulheres de qualquer idade. O mesmo direito se adequa a pacientes com deficiência física ou comprometimento cognitivo ou psíquico. Além das imposições legais, vários outros pacientes solicitam a presença de acompanhantes durante seus exames de imagem, para apoio emocional.

Os questionários de segurança e os procedimentos de rastreio de objetos ferromagnéticos utilizados para o paciente devem ser estendidos ao seu acompanhante, sem exceção. Termos de conformidade às normas de segurança são válidos como instrumentos legais, mas não constituem medida protetiva e não podem substituir o obrigatório rastreamento de objetos ferromagnéticos em qualquer pessoa que vá entrar na zona 4.

Uma vez dentro da zona 4, o acompanhante deve permanecer em local afastado do magneto, preferencialmente antes do limite da linha de 5 Gauss, reduzindo o risco de efeito translacional caso algum objeto ferromagnético tenha passado despercebido às manobras de rastreamento.

Acompanhante ou qualquer pessoa que se recuse a obedecer às regras de segurança e que insista em portar objetos inapropriados ao ambiente de RM não deve ter acesso às zonas de restrição 3 e 4.

O Credo do Serviço de Diagnóstico por Imagem deve incluir instruções para conduta frente a pessoas disruptivas, que agridem verbalmente ou mesmo atacam os membros da equipe com o objetivo de impor suas vontades em detrimento das regras de segurança. Essas normas são fundamentais no ambiente da RM (9).

Procedimento de Remoção de Arma de Fogo Atraída pelo Magneto

O caso particular de arma de fogo representa situação desafiadora para os membros da equipe de RM, visto que, além de poder ser atraída pelo magneto, ela pode disparar projéteis, aumentando a gravidade do acidente. Já foi demonstrado que, sob o efeito translacional do campo magnético, a arma de fogo pode disparar mesmo com as traves de segurança ativadas (10). Também já foi demonstrado que tentativas de remoção de uma arma de fogo que foi atraída e está grudada no magneto podem causar disparos de projéteis, mesmo com o sistema de travamento de segurança ativado (11). Dessa forma, para a remoção segura da arma de fogo, faz-se necessária a extinção do campo magnético, aumentando o prejuízo que o evento adverso causou.

Análise de Causa Raiz

Em qualquer evento adverso, particularmente naqueles com desfechos fatais, é comum que se deseje apontar culpados. No entanto, causas sistêmicas podem estar na raiz do evento adverso e devem ser pesquisadas de forma a propiciar mudanças estruturais e estratégicas que impeçam tal evento de tornar a ocorrer. Os Never Events são considerados eventos sentinela pelas Joint Comissions, requerendo análise de causa raiz e divulgação com transparência (2,3).

Caso seja evidenciado que uma conduta temerária por membro da equipe propiciou ou não impediu o acidente, podem ser necessárias medidas punitivas. No entanto, caso se comprove que os membros da equipe se viram involuntariamente envolvidos no evento adverso, impõe-se assegurar-lhes conforto psicológico diante do trágico ocorrido.

Cabe às lideranças colocar a segurança de todos como prioridade, estabelecendo e revendo periodicamente medidas de prevenção e fornecendo educação continuada aos membros da equipe. Desse modo, é possível transmitir aos pacientes e à equipe envolvida em seu atendimento a tranquilidade necessária para a execução de procedimentos complexos com elevadas qualidade e confiabilidade.

 

 

Referências

  1. Serious Reportable Events – National Quality Forum https://www.qualityforum.org/topics/sres/serious_reportable_events.aspx Acesso em: 14/03/2023
  2. Flug JA et al. Never Events in Radiology and Strategies to Reduce Preventable Serious Adverse Events RadioGraphics 2018; 38:1823–1832
  3. Kruskal JB et al. Managing an acute adverse event in a radiology department. RadioGraphics 2008;28(5):1237–1250.
  4. BRASIL. ANVISA. RDC 36/2013. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0036_25_07_2013.html. Acesso em: 16/03/2023.
  5. BRASIL. ANVISA. NOTA TÉCNICA GVIMS/GGTES/ANVISA No 05/2019. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/notas-tecnicas-vigentes/nota-tecnica-n-05-2019-gvims-ggtes-anvisa.pdf/view Acesso em: 16/03/2023.
  6. ACR Manual on MR Safety 2020 ACR COMMITTEE ON MR SAFETY https://www.acr.org/-/media/ACR/Files/Radiology-Safety/MR-Safety/Manual-on-MR-Safety.pdf
  7. Kanal, E. et al. American College of Radiology White Paper on MR Safety: 2002 AJR 2002; 178:1335–1347
  8. Kanal, E. et al. American College of Radiology White Paper on MR Safety: 2004 Update and Revisions AJR 2004;182:1111–1114
  9. Willis MH et al. Optimizing Performance by Preventing Disruptive Behavior in Radiology RadioGraphics 2018; 38:1639–1650
  10. Beitia, AO et al. Spontaneous Discharge of a Firearm in an MR Imaging Environment. AJR 2002; 178: 1092-1094
  11. Kanal E. e Shaibani A. Firearm safety in the MRI Environment. Radiology 1994; 193:875-876

 

Revisão: Dra. Bruna Dutra

 


 

Agradecimento: Agradecemos a colaboração da Dra. Cecília M. Achcar (Diretora Médica na Guerbet para Assuntos Médicos, Regulatórios e Farmacovigilância na América Latina) e de sua equipe com os dados referentes à legislação brasileira sobre Farmacovigilância.

 

Autor

Ana Teresa de Paiva Cavalcante

Dra. Ana Teresa de Paiva Cavalcante tem Doutorado em Ciências pela USP. É Pós-graduada em Segurança e Qualidade pela Harvard Medical School – SQIL Program; Certificada em Segurança em Ressonância Magnética pelo American Board of Magnetic Resonance Safety – ABMRS – MRSC™. É Radiologista do grupo de Medicina Interna do Americas/UHG Brasil.