Food&Arts

Assim quereria minha última coluna

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Amuse bouches

Após seis anos e meio escrevendo ininterrupta e mensalmente esta coluna para o Jornal da Imagem, chego hoje à última delas, não talvez devido a um único fator específico, mas a uma conjunção deles. Em primeiro lugar, mesmo embora eu continue frequentando diversos restaurantes pelo mundo (e continuarei a fazê-lo), sobre os quais poderia me manter a escrever indefinidamente, tenho a sensação de que já disse muito, e mais do que deveria. Já escrevi sobre a maioria dos meus restaurantes favoritos e sobre meus poemas e livros preferidos, em um formato que não pode perdurar para sempre. Escrevi sobre grandes chefs, pratos os mais fabulosos, jantares guardados a sete chaves na memória, andanças solitárias por noites aqui e acolá. Em segundo lugar, penso que há que se dar espaço para o novo; está cheio de gente por aí com experiências interessantes a contar, novas vozes a serem ouvidas, em novos formatos e novos textos. Em terceiro lugar, jamais tive a habilidade de escrever sem desnudar um pouco minha alma e minha intimidade, e esta exposição a colegas de profissão pode não ser a coisa mais inteligente ou estratégica a se fazer, conforme me alertou um amigo recentemente.

Minestrone

Mas, o principal deles, sem sombra de dúvidas, é que estou em um ano muito crucial de fechamento de ciclos e abertura de novos caminhos; como um bom taurino, gosto de marcos temporais bem definidos, acontecimentos firmes no tempo que marquem inícios e fins de ciclos, e o fim desta coluna entrará para um rol de vários fechamentos de ciclos que me impus este ano. Impossível e desnecessário enumerar tantos acontecimentos ao longo destes anos, que me moldaram e transformaram em diferentes esferas da vida, e estas linhas me acompanharam durante todo este processo; ter perdido mais de 50 kg apenas com dieta e transformação do meu estilo de vida; o crescimento acadêmico e profissional; o início e o fim de um relacionamento, e assim por diante. 

Foi, antes de mais nada, uma honra e privilégio ter recebido este espaço para escrever estas linhas durante todo esse tempo, e não tenho palavras suficientes para agradecer o generoso convite que recebi do Dr. Tufik Bauab Jr. em 2017 (a quem admiro e que foi um dos meus inspiradores a seguir carreira em radiologia abdominal), bem como todo o apoio que tenho recebido da Comissão Editorial do Jornal e das diversas Diretorias da SPR que se sucederam ao longo destes anos; pude exercer esta atividade livremente, sem ter sido jamais tolhido ou censurado em uma única vírgula, o que para mim é motivo de orgulho por cada uma das pessoas que compõem esta Sociedade. Foi um prazer, também, durante estes anos, fazer novas amizades com pessoas hoje queridas, e que me conheceram ou chegaram a mim através deste espaço; ter recebido o carinho e os comentários de colegas que não raramente gastaram seu tempo para escrever um e-mail ou me parar num corredor para comentar sobre algo que leram e gostaram. Este, foi, sem dúvidas, o principal combustível para seguir escrevendo mesmo com o tempo cada vez mais escasso.

Por fim, eu, que já escrevi aqui sobre muitas dezenas de pratos e restaurantes, sempre me perguntei sobre o que exatamente poderia escrever em minha última coluna, independentemente de como e quando este dia chegasse. E desde há muito tenho certo comigo mesmo de que seria como que o compartilhamento de um segredo; escreveria sobre o meu restaurante favorito na vida. Aquele onde gostaria de fazer minha última refeição (se assim pudesse escolher), antes de partir deste mundo. Já o visitei muitas vezes, desde quando ele tinha duas estrelas Michelin (hoje tem as máximas três), mas ficarei restrito àquela primeira visita, a primeira experiência, a que me transformou muito agradavelmente em uma pessoa ainda mais apaixonada por gastronomia. O restaurante fica no belíssimo bairro de Mayfair, em Londres, e chama-se Hélène Darroze at The Connaught, da grande chef francesa de mesmo nome que possui três restaurantes na França e um na Inglaterra.

Porco de Pas-de-Calais

Lembro-me de cada detalhe daquela tarde de maio em 2016, um dia agradabilíssimo em Londres, de céu de claríssimo azul, em que fui a pé da casa em que residia até o restaurante, em uma reserva para as 13h. Não estava quente, batia uma brisa agradável, e fui caminhando distraído pelas calçadas, contemplando os lindos jardins das residências. Cruzei a imponente porta principal do hotel, o The Connaught, um dos mais fabulosos cinco estrelas da cidade, e atravessei um corredor com lindos painéis de madeira escura até a entrada do restaurante.

Um restaurante excepcional não se faz apenas com comida excepcional. É preciso muito, muito mais que isso. Ir a um bom restaurante é uma experiência que deve culminar numa satisfação harmoniosa que contemple corpo e espírito, nada menos do que isso, sempre. Há o conforto dos sofás e das poltronas, que nos abraçam durante a refeição; a beleza dos tapetes; os talheres de prata e a delicada porcelana; a música suave, não invasiva; a elegância e discrição dos comensais; o atendimento cortês, o preciso serviço de vinhos. 

Chocolat des Caraïbes

Foi uma verdadeira festa que se iniciou com excelentes opções de champagne em taça para a recepção, e incrível pão. Parênteses para o pão: é incrível o cuidado que boa parte dos restaurantes bons têm com os pães; são pães excepcionais, frescos, deliciosos, crocantes, cada chef se preocupando demais em servir o melhor do melhor pão em seu restaurante. Devidamente abastecido com uma taça de champagne, chegaram as amuse-bouches: frango e jamón, canapé de peixe e gazpacho. Em seguida, uma releitura de minestrone, composto por um velouté de ervilhas, vegetais da estação, queijo Parmigiano Reggiano e lardo di Colonnata; esplêndido. Seguiram-se costeleta e lombo de porco de Pas-de-Calais, com uma pururuca que deixaria qualquer mineiro com inveja mortal; acompanhava falafel, lâminas de berinjela e pimiento del piquillo. Talvez o melhor porco que já comi na vida.

A sobremesa, verdadeira obra de arte: chocolat des Caraïbes & coconut; o precioso e delicado chocolate, intenso, vinha em três itens. Numa espécie de biscoito, no creme que o recheava, e em uma calda quente; o coco vinha como sorbet e raspas. Diferentes texturas e sabores numa combinação dos deuses.

Petit fours

Já devidamente alegre, petit fours sublimes para acompanhar o derradeiro cafezinho; na saída, um bolinho italiano recheado com calda de vinho de Bordeaux para comer em casa. Uma verdadeira experiência Michelin. 

Manuel Bandeira queria que seu último poema fosse terno dizendo as coisas mais simples, ardente como um soluço sem lágrimas, que tivesse a beleza das flores quase sem perfume, a pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos. Não tenho pretensão similar, longe de mim. Da primeira a esta derradeira, procurei imprimir aqui tão somente um pouco de paixão, este combustível essencial da vida.