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Não foste tu que perdi

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Juro que esta coluna é para falar de tarta de queso, chegaremos lá com alguma generosa paciência do leitor, mas antes permitam-me caminhar até lá ao meu modo. Em minha última ida a Madri, em maio do ano passado, peguei dias de sol escaldante. Talvez um final de primavera atípico, mas em várias tardes chegamos mesmo a experimentar temperaturas na casa dos 38 graus. Eu amo o calor intenso, mas neste caso preferiria estar em Mallorca. As altas temperaturas, todavia, não foram obstáculo para que eu passasse longos dias desfilando a pé pela cidade, palmilhando suas ruas sob o sol inclemente. A alternativa seria a chuva, então vamos de sol mesmo, muito obrigado. Madrid é belíssima de ser desfrutada sob o sol. Correr ouvindo música por entre os jardins e lagos do parque El Retiro em um dia de céu azul é uma delícia.

Era uma destas tardes. Eu já havia corrido no El Retiro pela manhã, voltado ao hotel para tomar banho e um café tardio, e agora estava novamente sob o calor a caminho do Museu do Prado xingando-me um pouco pelos exageros matinais, a pele começando a reclamar em atrito e total inimizade com a camiseta. Desnecessário dizer que o Prado é um mundo que inevitavelmente demanda inúmeras visitas para ser apreciado em sua plenitude. Como tenho o resto da vida, não tenho pressa. A cada vez que vou, delicio-me com poucas obras, absorvendo-as em cada detalhe que me encanta. Desta vez foi um Ticiano. A primeira vez que vi um Ticiano (conscientemente, pelo menos) terá sido na National Gallery de Londres, séculos atrás, e isso marcou minha vida. Costumo dizer (e já o disse aqui) que não há azul no mundo como os azuis de Ticiano. De sorte que quando entro pela primeira vez numa sala desconhecida de qualquer museu, e ali há um Ticiano, meu pescoço vira-se automaticamente e instintivamente, por alguma espécie de magnetismo desconhecido, e pelo azul eu sei que se trata de um Ticiano. A obra em questão desta vez era Vênus e Adônis, que o mestre veneziano pintou para seu amigo e mecenas, o rei Filipe II de Espanha, na segunda metade do século XVI.

A cena é inspirada nas Metamorfoses, de Ovídio. Vênus, a deusa do amor, encontra-se apaixonada pelo mortal Adônis, musculoso jovem caçador de beleza inigualável, que não cede de maneira alguma a seus encantos. Adônis encontra-se na iminência de sair para a caça, seus cães já estão afoitos e babando à sua espera; Vênus, nua, de costas para o observador, em atitude dramática, tenta de todas as maneiras segurar o amado pelo tronco, para que ele não se vá; agarra-o com força, e o jovem tenta se soltar. Vemos uma atmosfera densa no horizonte, o rico cromatismo característico do mestre, os azuis querendo condensar-se em cinza e tormenta, sfumatos belíssimos; prenunciamos algo de ruim no horizonte e na cena. Sabemos pela história que Adônis vai, sim, desvencilhar-se dos braços da deusa e morrer nesta caçada; terá o corpo destruído por um javali. O quadro é de uma fase peculiar de Ticiano marcada por uma reflexão quase amarga da nossa fragilidade à mercê do destino, das intempéries, das circunstâncias.

Parado ali em frente ao quadro e conhecendo a história, belamente narrada não apenas por Ovídio, mas também por Shakespeare, fico perguntando a mim mesmo o que terá sentido Vênus ao ver morto o amado. Vem-me à cabeça um lindo e dramático verso de Ingeborg Bachmann: “Não foste tu que perdi, mas o mundo”. Pondero em seguida que o verso seria descabido neste contexto, porque no fundo Vênus jamais possuíra Adônis de verdade; era um amor não correspondido. Os longos poemas de Ovídio e Shakespeare deixam isso bem claro. Em Shakespeare lemos uma cena emblemática, o primeiro assalto de Vênus a Adônis, quando ela literalmente arranca o jovem de seu cavalo e o segura com força ao solo. “Para trás ela o empurrou, como ela mesma quisera ser empurrada/ E o dominou em força, ainda que não em luxúria”. Fica claro aqui que, a despeito de sua força superior como deusa, Vênus jamais poderá governar o desejo do jovem; ele não corresponderá a seu afeto, não importa o quão ardentemente ela tente seduzi-lo. Suprema ironia, suprema tragédia: a deusa do amor não possui poderes ilimitados nesse terreno. Nas palavras do bardo inglês: “Ela é o Amor, ela ama, e ainda assim não é amada”. Virando-me de costas para o quadro, prestes a ir embora, concluo que o verso de Bachmann, faz, sim, sentido. O amor, correspondido ou não, não deixa de ser amor; e, portanto, a perda será sempre sentida. Penso que Vênus terá bem perdido seu chão e seu mundo com a morte de Adônis.

Lá fora a temperatura havia amenizado um pouco com o cair da tarde. Precisava com desespero comprar um perfume favorito que acabara e pus-me a andar em direção à única perfumaria que o vende em Madrid, pois a marca é quase impossível de achar fora da França. Felizmente o perfume estava disponível, e com dois frascos devidamente garantidos em mãos, achei que era hora de uma pausa para tomar um café e contemplar o final da tarde, as pessoas voltando apressadas do trabalho na hora do rush (como é bom estar de férias). E assim chegamos à tarta de queso.

Como desde criança e amo de paixão. Diferentemente da cheesecake americana, cuja massa é uniformemente densa, e da italiana (à base de ricota esfarelenta), a torta espanhola (basca, na verdade) é um paraíso de cremosidade caudalosa, que escorre em uma poça de prazer, casquinha dourada e caramelizada. Não possui base de biscoito, não é tão doce por não levar muito açúcar, não é assada em banho-maria e normalmente não leva calda (para que uma calda, se podemos consumir com um magnífico vinho doce geladinho?). O segredo da torta de queijo basca é sua massa líquida, assada em temperatura mais alta, porém por menos tempo, a fim de garantir a crosta dourada e o interior cremoso.

 

La Bientirada de Quevedo

 

Chego à La Bientirada de Quevedo, onde servem uma das minhas favoritas na cidade, e também uma das mais famosas de Madrid. Instalo-me sob o guarda-sol numa agradável mesa na calçada e peço a torta, na companhia de um vinho de sobremesa e água. A primeira garfada é uma coisa espetacular, há o caramelizado crocante da crosta, há a cremosidade da massa, o gosto perfeito do queijo. É um pequeno momento de sublime êxtase, e por um instante penso que o amor, as histórias de amor, os dramas, as lágrimas operísticas, as dramáticas mortes poéticas, os quadros colossais, tudo isso é nada, muito pequeno, irrisório, insignificante, perto deste prazer. Uma outra favorita é a do moderninho restaurante Fismuler, igualmente perfeita, mas com uma agradável peculiaridade: preparam-na com uma combinação de vários queijos de gosto forte, adicionando então à combinação uma potência de sabores verdadeiramente encantadores (esta, sim, quase obrigatória com vinho, para dar uma cortada no queijo marcante entre as garfadas).

 

Fismuler

 

Arremato tudo com um fabuloso expresso, pago a conta e ponho-me em meu caminho de volta para o hotel, o estômago muito realizado. Vou descansar um pouco. A noite será belíssima, ser solteiro não é a pior coisa do mundo. E estarei com meu perfume novo.

Dr. Ulysses Torres

Médico radiologista do Grupo Fleury e da Rede D'Or São Luiz