A cólera é uma doença infecciosa intestinal aguda ou crônica, causada pelos sorotipos O1 e O139 da bactéria Vibrio cholerae, que produz uma diarreia secretora caracterizada por evacuações aquosas abundantes, pálidas e leitosas, semelhantes à água do enxágue do arroz, com alto teor de sódio, bicarbonato e potássio, e uma quantidade reduzida de proteínas. Em sua forma grave, a diarreia aquosa de grande volume leva rapidamente à desidratação do organismo.

Ela é transmitida principalmente por água não potável e alimentos contaminados com matéria fecal humana que contenha a bactéria. O ser humano é o único ser vivo afetado.
Originária da Índia, a cólera nunca havia se globalizado, porque, devido à gravidade de seus sintomas, os pacientes não conseguiam levar a doença para regiões distantes, pois morriam antes de chegar. No entanto, a revolução industrial substituiu o cavalo pelo trem, e o navio à vela pelo navio a vapor, aumentando a velocidade de transporte. Com isso, as doenças viajaram. Assim, no século XIX, a cólera tornou-se a nova doença. Ao longo desse século, ela se espalhou pelo mundo a partir de seu reservatório original no delta do Ganges, na Índia. São reconhecidas seis pandemias de cólera durante o século XIX, que, em sucessão, mataram milhões de pessoas em todos os continentes: 1817, 1829, 1852, 1863, 1881-1896 e 1899-1923.
A segunda pandemia, que começou em 1829, alcançou os países ocidentais: primeiro Alemanha, Bélgica, França e Inglaterra, e depois se espalhou para a América. Foram principalmente os imigrantes irlandeses que, em busca de uma vida melhor, transportaram consigo a doença.
A cidade de Quebec, no leste do Canadá, às margens do rio São Lourenço, não escapou desta doença. Os primeiros casos surgiram no início do verão, em junho de 1832. De uma população de cerca de 25.000 pessoas, estima-se que cerca de 3.000 morreram, sem contar os próprios imigrantes. Pouco se sabia sobre essa doença. Alguns acreditavam que a cólera era transmitida por contágio, enquanto outros pensavam que a causa eram os miasmas provenientes de águas estagnadas, lixo ou materiais em decomposição. Em 1834, ocorreu outro episódio de cólera na cidade de Quebec, mas de menor gravidade.
Como resultado desta epidemia, em 1832, o cemitério da Grande Allée, em Quebec, foi aberto, assim como a estação de quarentena na ilha de Grosse Île, onde, entre 1832 e 1848, milhares de irlandeses foram colocados em quarentena. Cerca de três mil imigrantes também foram enterrados nesta ilha, hoje um monumento histórico, após morrerem de tifo e outras doenças.
Esta tragédia inspirou o pintor canadense Joseph Légaré, que nasceu em uma família rica em 1795, em Quebec. Ele foi um artista autodidata, conhecido por ser o primeiro pintor de paisagens nascido no Canadá e por suas representações de eventos culturais significativos e suas pinturas das Primeiras Nações. Enquanto muitos pintores de sua época escolhiam principalmente temas religiosos e retratos, Légaré optou por pintar paisagens de seu entorno e a história local. Ele participou ativamente da vida política de Quebec e do Baixo Canadá, sendo um defensor da separação da Inglaterra e uma aliança com os Estados Unidos. Ele não alcançou o sucesso econômico durante sua vida e suas pinturas frequentemente foram rejeitadas devido às suas associações políticas.
Em 1832, Légaré pintou “A cólera em Quebec”, uma pintura a óleo de 82,2 x 111,4 cm, que pertence ao Museu de Belas Artes do Canadá. A obra oferece um olhar sobre o clima de doença, pânico e morte que assolou a cidade de Quebec na primeira metade do século XIX.
Na tela, pode-se ver a catedral e as casas que cercam a rua Buade como pano de fundo para uma série de personagens que circulam na praça do mercado, em uma noite de verão sob a lua cheia. Com bastante detalhe, Joseph Légaré representa uma multidão nervosa, uma carroça transportando cadáveres e um clérigo dando a extrema-unção a um moribundo.
As fogueiras acesas numa noite de lua cheia criam uma atmosfera fantasmagórica. Naquela época, acreditava-se que o fumo do fogo servia para purificar e eliminar os vapores pestilentos das águas estagnadas. O contraste é dramático, pois, por um lado, o ambiente corresponde ao início do verão, a estação da vida e da eclosão das folhagens, e, por outro lado, a morte reina na cidade. O verão, estação da vida, em oposição ao longo, árduo e duro inverno de Quebec, perde precisamente essa qualidade de símbolo de vida. O cenário da noite de lua cheia, favorita dentro dos códigos do romantismo, é agora portador da doença, do mal invisível.
Em 1854, vinte e dois anos após a epidemia em Quebec, o médico italiano Filippo Pacini descreveu o bacilo Vibrio cholerae, que no mesmo ano também foi descrito pelo espanhol Joaquín Balcells y Pascual, e em 1856 pelos portugueses António Augusto da Costa Simões e José Ferreira de Macedo Pinto. Também em 1854, o médico britânico John Snow demonstrou que a cólera era causado pelo consumo de águas contaminadas com fezes, ao constatar que os casos dessa doença se agrupavam em áreas onde a água consumida estava contaminada. Em 1884, o alemão Robert Koch, sem conhecimento do trabalho de Filippo Pacini, isolou e identificou a bactéria causadora da cólera. Devido à sua grande preeminência, a descoberta foi amplamente divulgada. Após essa descoberta, em 1885, a vacina anticolérica foi preparada e administrada pela primeira vez a milhares de pessoas graças ao médico espanhol Jaime Ferrán y Clúa.
Prof. Dr. Alfredo Buzzi é Professor Titular de Diagnóstico por Imagens, da Universidad de Buenos Aires; Membro Honorário Internacional de da Sociedade Paulista de Radiologia; e Editor da Revista “ALMA- Cultura y medicina” (http://www.almarevista.com).