Em 1792, Francisco de Goya, vítima de uma doença, foi convidado a passar uma temporada na residência da Duquesa de Alba, em Sanlúcar de Barrameda. Após o período de convalescença, já bastante recuperado da estranha enfermidade que havia sofrido, e que lhe provocou uma surdez que o acompanharia pelo resto da vida, continuou pintando, mas em uma vertente muito diferente daquela que havia seguido até então. Goya havia desenvolvido sua carreira artística sob o abrigo de uma clientela seletiva, que lhe havia encomendado principalmente retratos e algumas obras de caráter jocoso com fins decorativos. A partir desse momento, Goya passou a se inclinar por outro tipo de conteúdos em suas telas, principalmente cenas de gênero, mas com uma visão sarcástica e caricaturesca da realidade, que em algumas ocasiões tocavam o fantástico, sem esquecer um componente fundamentalmente trágico e até mesmo desagradável.
Assim nascem uma série de desenhos, gravuras e telas que o próprio pintor chamaria de “caprichos” da vida real, pois eram pintados por seu próprio gosto ou capricho, e não por encomenda de algum cliente. Inicialmente, a intenção de realizar esse tipo de desenhos e pinturas era servir como terapia durante sua recuperação da doença, mas, com o tempo, essas representações agradaram a Goya, e ele continuou a produzi-las com uma destreza magistral, ao ponto de lhe proporcionar um aperfeiçoamento em sua técnica pictórica e um refinamento em um talento que começava a florescer mais intensamente.
Quando Goya voltou a Madri, continuou com esse tipo de pinturas, ao mesmo tempo em que seguia realizando os trabalhos encomendados por sua clientela exclusiva, alcançando o posto de primeiro pintor da Câmara Real. Naquele momento, era um artista de sucesso, capaz de retratar as personalidades mais importantes da época, começando pela família real de Carlos IV, passando por toda a aristocracia de sua corte e muitas das personalidades culturais do período, como o político iluminista Gaspar Melchor de Jovellanos.
É nesse contexto que pinta “O Recinto dos Doentes” (“Corral de apestados” – Figura 1), uma tela de pequeno formato que ilustra os horrores de um grupo de doentes no interior cavernoso e frio de um hospital, onde pessoas morrem e sofrem em massa devido a uma epidemia. Homens, mulheres e crianças mortos ou agonizantes, empilhados e amontoados na sala abobadada, são vítimas da solidão e do mais triste abandono.
A magistral composição do pintor apresenta os afetados dispostos em um primeiro plano, em uma atmosfera opressiva, atormentados por uma tragédia pessoal de sofrimento físico e emocional a que estão submetidos. Esses sentimentos são intensificados pelas pessoas que, ao tentar ajudar os doentes oferecendo água e cuidados, tapam o nariz para suportar o odor pestilento que emana de corpos sujos ou em decomposição.
Da obra, parece emanar um pessimismo infinito em relação ao destino dos doentes. A causa da epidemia é desconhecida, mas, como era costume, os afetados eram isolados e confinados em um lugar lúgubre e sórdido, em que seu único contato com o mundo exterior era uma janela por onde entrava luz. Só se percebe isolamento e a falta de comunicação, embora em parte atenuados por aquelas pessoas que, de forma altruísta, arriscam sua saúde para atender os infectados. Esse ato generoso para com os outros constitui o único exemplo de esperança diante do desânimo e consternação que parecem invadir toda a cena.
Goya se apresenta como um magnífico cronista dos costumes de sua época. Um tempo em que coexistiam os ideais do Iluminismo, com os quais ele se identificava por considerar que eram o progresso, e outras práticas e ideias do passado, praticamente medievais, que ainda imperavam no pensamento de muitos governantes e também de muitos governados.
Prof. Dr. Alfredo E. Buzzi
Professor Titular de Diagnóstico por Imagem, Universidade de Buenos Aires
Membro Honorário Internacional da Sociedade Paulista de Radiologia
O autor é editor da Revista “ALMA- Cultura y medicina”