
A hipertricose é uma condição geralmente causada por distúrbios hormonais que provocam um aumento leve a moderado dos pelos faciais, o que é particularmente perceptível em mulheres por se tratar de uma característica incomum nesse sexo. Em alguns casos, essa doença pode ser causada por uma mutação dominante de um gene localizado no cromossomo 8, conhecida como “Síndrome de Ambras”, uma enfermidade extremamente rara, com incidência estimada de 1 em 1.000.000 na população. O quadro clínico é caracterizado por um hirsutismo generalizado exagerado, com predominância na face, ombros e membros superiores.
É provável que essa anomalia genética tenha dado origem ao mito do “homem-lobo”. Essa síndrome é tão rara que, ao longo da história, a maioria dos afetados acabou se tornando, devido à sua aparência incomum, vítimas de acusações de possessão demoníaca ou atrações de circo – a única profissão que lhes permitia ganhar o sustento e atenuar o ostracismo em uma sociedade que historicamente rejeitou o diferente e o desconhecido.
Pedro González (1537–1618) nasceu em 1537 na ilha canária de Tenerife, carregando consigo tanto um infortúnio quanto uma sorte. O infortúnio era ter nascido com o corpo totalmente coberto de pelos; a sorte, ter sido descoberto aos 10 anos por franceses que o levaram como presente ao Rei Henrique II. Embora tenha enfrentado o estigma de ser visto como uma prova viva de que os “selvagens” realmente existiam, o monarca logo percebeu a inteligência do pequeno Pedro, que soube se destacar até se tornar um cortesão respeitado e admirado.

Giulio Alvarotto, diplomata enviado pelo rei da Itália à corte francesa, o descreveu da seguinte forma: “Seu rosto e corpo estão cobertos por uma fina camada de pelos, de cerca de cinco dedos de comprimento (9 cm) e de cor loiro-escura, mais fina que a de uma ‘marta cibelina’ e com um bom cheiro. Apesar disso, a cobertura de pelos não é muito densa, sendo possível ver bem os traços de seu rosto” (Figura 1).
Já adulto, o “selvagem das Canárias”, como era conhecido, se casou com uma jovem loira e corada chamada Catherine, com quem teve três filhos e duas filhas – todos herdaram sua condição (Figura 2).
Do ponto de vista artístico, os dois melhores retratos do clã González (ou Gonsalvus, em sua versão latina) são da época em que a família se estabeleceu definitivamente na corte de Parma, junto aos Farnésio. O primeiro deles é o retrato de Antonieta, uma das filhas de Pedro e Catherine, que na época devia ter cerca de oito anos.

Em Bolonha, o médico e naturalista Ulisse Aldrovandi (1522–1605) examinou Antonieta e fez a seguinte descrição: “O rosto da menina estava coberto de pelos, exceto o nariz, os lábios e a região ao redor da boca. Os pelos de sua testa são mais longos e duros do que os que cobrem suas bochechas, embora estes sejam mais suaves ao toque do que os do resto do corpo. Ela tem pelos em grande parte das costas e pelos amarelos que a cobririam até o início das virilhas.”
A pintora Lavinia Fontana, autora do retrato, conseguiu criar uma imagem infantil de grande ternura, apesar da fisionomia incomum da modelo. A menina, elegantemente vestida, segura com suas mãos delicadas uma carta que diz:
“Das ilhas Canárias foi levado
ao senhor Henrique II da França
Dom Pietro, o homem selvagem;
de lá, instala-se na corte
do duque de Parma, junto comigo,
Antonietta, e agora estou
na casa da senhora dona
Isabella Pallavicina, marquesa de Soragna” (Figura 3).
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Prof. Dr. Alfredo E. Buzzi
Professor Titular de Diagnóstico por Imagem, Universidade de Buenos Aires
Membro Honorário Internacional da Sociedade Paulista de Radiologia
O autor é editor da Revista “ALMA- Cultura y medicina”