Arte e Medicina

O período amarelo de Van Gogh

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Figura 1

A planta Digitalis purpurea ou dedaleira, que decorou tantos cenários artísticos e causou grande impacto por seus efeitos terapêuticos e tóxicos em casos de overdose, não foi utilizada apenas para tratar a chamada hidropisia da época. No final do século XIX, também era empregada no tratamento de doenças mentais. Um dos pacientes mais famosos tratados com ela para aliviar seus estados mentais alterados foi Vincent van Gogh (1853-1890).

Nas últimas semanas em Auvers-sur-Oise, o pintor foi paciente do Dr. Paul Ferdinand Gachet (1828-1909), que, interessado no uso terapêutico da dedaleira para desordens mentais, medicou Van Gogh com este fármaco para tratar uma epilepsia atribuída à sua dependência por absinto.

Como demonstração de gratidão pela relação empática gerada com seu médico, o artista pintou dois retratos de Gachet, em que ele aparece melancolicamente apoiado em uma mesa, com plantas de dedaleira claramente visíveis, certificando a prescrição que recebia durante sua internação (Figura 1).

Em uma carta a Gauguin, Van Gogh comenta que o rosto triste do médico, “pensativo, quase preocupado, com um leve ceticismo”, é “a expressão desencantada do nosso tempo”.

E é na obra desse genial artista que podemos encontrar evidências dos sinais característicos de intoxicação por dedaleira.

Figura 2

Sua reconhecida fascinação pela cor amarela se intensificou nas obras de seus últimos anos, chegando a pintar seu quarto nesse tom. Especula-se que, além de uma preferência estética, essa escolha possa ter sido influenciada por fatores externos, como sua dependência por absinto e uma sobremedicação com dedaleiras.

Por muito tempo, diversas teorias explicaram que sua predileção pelo amarelo, além de uma questão estética, devia-se a fatores como lesão solar, glaucoma ou cataratas. Hoje, há provas suficientes que documentam a dependência de Van Gogh ao álcool, especialmente ao absinto, uma bebida destilada de alta graduação alcoólica muito comum na época, feita a partir de Artemisia absinthium. A tujona, um terpeno presente na bebida, causava excitação, convulsões e dano cerebral progressivo em seus consumidores. Acredita-se que o absinto esteve envolvido em sua epilepsia e diretamente em sua morte.

Figura 3

No entanto, a xantopsia (cromatopsia em que todos os objetos visíveis parecem ter um tom amarelado) e o efeito de halos coloridos representados em seu último período (halos cromáticos ao redor de corpos luminosos) provavelmente foram desencadeados por uma intoxicação por dedaleira. Esses são sintomas frequentemente relatados por indivíduos que sofrem sobredosagem dessa droga. Em várias obras que Van Gogh pintou no período final de sua vida, como “A Noite Estrelada” (Figura 2) e “Café Noturno com Mesa de Bilhar” (Figura 3), o efeito “halo” é muito evidente.

Podemos, então, supor que sua marca artística foi a expressão de um efeito tóxico induzido por uma medicação destinada a tratar outra intoxicação. Mais um caso em que medicamentos, por meio de seus efeitos indesejáveis, modificaram passagens da história e da arte.

EPÍGRAFES

Figura 1: “O Doutor Paul Gachet” (Vincent Van Gogh, 1890). Observe o ramo de Digitalis purpurea, de onde se extrai a digitalina.

Figura 2: “A Noite Estrelada” (Vincent Van Gogh, 1889). Museu de Arte Moderna, Nova York. Observe o efeito de halo ao redor dos corpos luminosos.

Figura 3: “Café Noturno com Mesa de Bilhar” (Vincent Van Gogh, 1888). Yale University Art Gallery. Observe o efeito de halo ao redor dos corpos luminosos.

 

Prof. Dr. Alfredo E. Buzzi

Professor Titular de Diagnóstico por Imagem, Universidade de Buenos Aires
Membro Honorário Internacional da Sociedade Paulista de Radiologia

O autor é editor da Revista “ALMA- Cultura y medicina”