Conexão Digital

A dura verdade sobre a cultura da inovação

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

A exigência do mercado global aumentou a necessidade das companhias de se diferenciarem para superar competidores, garantir as margens de lucro e manter a sua relevância no mercado. Há cinco principais formas de manter a vantagem competitiva: autonomia, inovação, assumir riscos, proatividade e agressividade competitiva1. A inovação é uma das estratégias mais importantes, e acredita-se que os demais métodos são na realidade baseados na inovação2.

Um mercado classicamente impulsionado pela inovação é o tecnológico. Entretanto, à medida que a digitalização da assistência médica se expande e tecnologias digitais emergentes revolucionam o atendimento ao paciente, a inovação cada vez mais passa a impulsionar também o mercado de saúde.

Há um estereótipo de que as culturas que favorecem a inovação são divertidas, tolerantes ao fracasso, e estimuladoras de experimentação, de diversidade e equidade. Ambientes que traduzem um melhor desempenho inovador são vistos como psicologicamente seguros, altamente colaborativos e não hierárquicos. Termos como gestão horizontal, metodologias ágeis e meritocracia baseada em performance se tornaram jargões durante o processo de contratação de startups ou empresas que investem em inovação corporativa.

Mas se a cultura inovadora é tão saudável, porque então um dos maiores desafios das empresas que inovam é exatamente garantir que sua cultura não se torne uma cultura tóxica?

Primeiramente, segundo já referido, a inovação está intrinsecamente ligada às big techs, que influenciam diretamente as regras da cultura da inovação. Mas trata-se de um mercado tão competitivo, que é denominado “oceano vermelho”, referindo-se ao banho de sangue decorrente da constante tentativa de superar os concorrentes. E mercados competitivos estimulam ambientes competitivos, com longas horas de trabalho, alta produtividade e nível de estresse, e com glorificação do desbalanço entre vida profissional e pessoal. Funcionários de empresas orientadas para a inovação enfrentam maiores cargas de trabalho e incertezas3, e não é incomum nestas empresas o encorajamento a comportamentos antiéticos (“vale-tudo”) que podem levar a um ambiente de trabalho estressante4.

Uma pesquisa feita através do Blind, um aplicativo para colaboradores de empresas de tecnologia, evidenciou que 57,16% dos entrevistados estavam sofrendo de esgotamento profissional. Este aplicativo foi usado por 40 mil funcionários da Microsoft, 25 mil da Amazon, 10 mil do Google, 7 mil do Uber, 6 mil do Facebook, dentre várias outras empresas de tecnologia. Na empresa Credit Karma, o burnout foi evidenciado em 70% dos seus funcionários5.

Outro ponto é o fato de a cultura inovadora ser na prática altamente paradoxal e difícil de implementar e sustentar. Isso porque as características divertidas que recebem tanta atenção são apenas um lado da moeda e devem ser contrabalançadas por características menos divertidas para que as empresas consigam, num ambiente tão competitivo quanto ao que pertencem, se destacar. A tolerância ao fracasso requer intolerância à incompetência; a experimentação exige uma disciplina rigorosa; a segurança psicológica requer muitas vezes uma franqueza brutal; a colaboração deve ser equilibrada com a responsabilidade individual, e a horizontalidade exige uma liderança forte.

É ótimo poder explorar ideias disruptivas que podem falhar, mas o fracasso também pode resultar apenas de projetos mal desenhados, incapacidade técnica, falta de transparência e má gestão. O Google pode incentivar a tomada de riscos e fracassos, pois certamente a maioria dos funcionários do Google é extremamente competente.

Seguindo este exemplo, parece então óbvio pensar que as empresas devam estabelecer padrões de alta qualidade para seus funcionários e que as pessoas que não atendem às expectativas devam ser demitidas ou movidas para funções que melhor se encaixam em suas habilidades. Steve Jobs era notório por demitir qualquer um que ele considerasse não estar à altura da tarefa.

Primeiramente no Brasil, um dos países campeões de ações trabalhistas e com uma cultura familiar, despedir pessoas não é algo trivial, nem algo com o qual nos sintamos confortáveis. Segundo, soma-se à inibição legal e à leniência cultural, um problema mundial: a falta de trabalhadores qualificados no mercado, ainda mais agravada pelo Covid-19.

Uma recente pesquisa da Korn Ferry, empresa global de consultoria organizacional, estima que até 2030 haverá uma falta global de talentos de mais de 85 milhões de pessoas, o que poderá resultar num prejuízo apenas no setor tecnológico dos EUA de US$ 162 bilhões em receitas anuais. Essa escassez pode ser explicada nos países europeus e Japão pela baixa taxa de natalidade e pelo envelhecimento populacional, ou nos EUAs pela saída (até 2030) da maioria dos babies boomers da força de trabalho, sem que as gerações mais jovens tenham tempo ou treinamento para assumir os cargos mais qualificados. O fato é que até 2030, a Rússia e os EUA podem enfrentar uma escassez de até 6 milhões de pessoas, a China uma escassez duas vezes maior, e o Brasil uma falta de até 18 milhões de trabalhadores qualificados. E embora muitos profissionais qualificados estejam preocupados que os avanços tecnológicos roubem seus trabalhos, o mais provável é que, nos próximos anos, não haja humanos suficientes para assumir tais cargos.

Se a captação e manutenção de profissionais de alta performance é complexa globalmente, no Brasil, somam-se ainda problemas estruturais que não podem ser negligenciados. Segundo o Fórum Econômico Mundial, entre 83 países, o Brasil ocupa a 60ª posição no índice de mobilidade social; um brasileiro nascido no menor patamar de renda levaria nove gerações para chegar à renda média do país. Ainda, dois terços dos brasileiros não têm curso superior e o terço que possui divide-se entre faculdades consideradas “boas” e “ruins”. Assim, quando requisitamos “boas universidades” para um cargo, estamos excluindo tanto os quase 70% que não conseguiram chegar ao ensino superior como os que conseguiram, porém em formações menos conceituadas6.

Seria então no Brasil, a meritocracia, conceito tão destacado na cultura inovadora e que dá às universidades o papel de árbitro das oportunidades conquistadas, justa? Dificilmente. Talvez esse conceito tenha sido vanguardista em 1958 num país mais igualitário, ao descrever um sistema no qual quem performa melhor, prospera mais. Mas quase 60 anos depois, no Brasil, o sistema meritocrático continua beneficiando os privilegiados de sempre, ou seja, aqueles oriundos de famílias afortunadas que tiveram acesso à boa educação, e perpetuando a falta de profissionais qualificados, de diversidade e equidade.

Neste cenário complexo, as empresas realmente vanguardistas, estão adotando uma abordagem mais proativa, assumindo a responsabilidade de treinar seus próprios talentos e estimulando uma cultura de qualificação individualizadas, de aprendizado e treinamento contínuos. Algumas estão inclusive aumentando a contratação de cargos junior e fazendo parceria com faculdades e especialistas para criar seus próprios cursos de treinamento completos, com módulos e treinamentos personalizados, medidas estas que podem simultaneamente reduzir a escassez de talentos quanto a disparidade educacional.

Finalmente, a característica paradoxal das culturas inovadoras pede por líderes que estejam muito atentos aos excessos e dispostos a intervir para restaurar o equilíbrio quando necessário. A intolerância ao risco pode aniquilar boas ideias, mas o risco excessivo pode se tornar impulsividade mal calculada. Da mesma forma, a intolerância à falta de experiência e ao fracasso prejudica a diversidade e cai na falácia da “meritrocia”, mas o excesso pode virar permissividade e sobrecarregar aqueles com maior desempenho. Até a colaboração e horizontalidade, que deveriam ser “melhores quanto maiores”, em excesso atrasam a tomada de decisões e prejudicam a unissonância da visão estratégica.

Dra. Fabíola Bezerra de Carvalho Macruz

Neurorradiologista do Instituto de Radiologia do HCFMUSP, Membro do Programa de Jovens Lideranças da Academia Nacional de Medicina e aluna de MBA de Análise de Big Data – Data Engineering na FIA.