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O amor e os olhos

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Em seu célebre poema História da Noite, Borges escreve que este intervalo de sombra entre dois crepúsculos, erigida pelos homens através dos séculos, inesgotável como um vinho antigo e impregnada de eternidade pelo tempo, “não existiria sem esses tênues instrumentos, os olhos”. Estes versos me cativam desde sempre, e não é coincidência que com eles Borges encerre este magnífico poema: passa mais de vinte versos usando uma espiral de lindas palavras e reconstruindo a grandeza e complexidade da história da noite, para finalmente concluir, em dois simples versos, que esta histórica, longínqua eternidade, feita de cegueira e sonho, nada seria sem eles, os frágeis, tênues olhos. Não se trata, afinal, somente aí o percebemos, de um poema sobre a noite. Trata-se de um poema sobre os olhos. 

Lobster roll

Acho os olhos uma das coisas mais sublimes do mundo, e já escrevi aqui há muito tempo que, certa época, sofrendo de um amor não correspondido pela única pessoa que eu talvez tenha de fato amado romanticamente nesta vida (ao ponto da dor e da agonia e do desespero), minha consolação era aquele verso de Schiller: Também o belo deve morrer. Aqueles olhos azuis que jamais seriam meus, para mim o epítome de toda beleza no mundo, um dia também seriam dissipados, deixariam de existir, já não estariam mais aqui, e de alguma forma isto era um alívio para o meu tormento, como uma promessa longínqua de que um dia esta dor também passaria. As alusões aos olhos sempre me fascinaram nos poemas de amor, pois a lista de metáforas e usos que poetas de todas as épocas e estilos fizeram sobre o assunto é algo absolutamente inesgotável, e de uma beleza sem limites. Os poetas encontram nos olhos uma forma de capturar a essência do amor e transmitir sua beleza e intensidade, usando-os como metáfora de janela para a alma e de porta para a paixão.

Shakespeare, em Romeu e Julieta: “Ai! Em teus olhos há maior perigo do que em vinte punhais“. Neruda: “Já não se encantarão meus olhos em teus olhos,/ já não se achará doce minha dor a teu lado./Mas por onde eu caminhe levarei teu olhar/ e para onde tu fores levarás minha dor“. García Lorca: “Tenho medo de perder a maravilha de teus olhos de estátua“. Rilke: “Tira-me a luz dos olhos – continuarei a ver-te”. E não podíamos deixar de citar nosso Camões: “Ditoso seja o dia e hora, quando/ Tão delicados olhos me feriam”. E no célebre Memorial do Convento, de Saramago, a história de Baltasar e Blimunda: “Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, E disse, Nunca te olharei por dentro”.

Impossível não se arrepiar com o perfeito Quando eu não te tinha, de Alberto Caeiro, em que a complexidade da transformação que o amor traz aos olhos e ao olhar é belamente expressa: 

 

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até à beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens

Reparo nelas melhor —

Tu não me tiraste a Natureza…

Tu mudaste a Natureza…

 

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,

Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

 

Voltemos outra vez a Neruda, agora sobre uns tais olhos da cor da lua:

 

Se não fosse porque têm cor-de-lua teus olhos,

de dia com argila, com trabalho, com fogo,

e aprisionada tens a agilidade do ar,

se não fosse porque uma semana és de âmbar.

 

se não fosse porque és o momento amarelo

em que o outono sobe pelas trepadeiras

e és ainda o pão que a lua fragrante

elabora passeando sua farinha pelo céu,

 

oh, bem-amada, eu não te amaria!

Em teu abraço eu abraço o que existe,

a areia, o tempo, a árvore da chuva,

 

e tudo vive para que eu viva:

sem ir tão longe posso ver tudo:

vejo em tua vida todo o vivente.

 

Vol-au-vent

Arrepiam-me estas palavras… olhos cor-de-lua…; és o momento amarelo em que o outono sobe pelas trepadeiras. Deve ser bom ser poeta e poder escrever essas coisas. E, para mim, o Vejo melhor os rios quando vou contigo, de Caeiro, e o Vejo em tua vida todo o vivente, de Neruda, dialogam perfeitamente: sim, o amor transforma o olhar.

Voltei ontem de Lisboa, uma curta viagem bate-e-volta de quatro dias, que resolvi fazer apenas para comer, beber, espairecer, perambular, numa espécie de saideira do ano. Tenho especial apreço pela cidade (minha avó portuguesa me levava praticamente todos os anos desde criança, de modo que perdi as contas de quantas vezes fui, bem mais de oito ou nove). O clima de fim de novembro estava fabuloso. Peguei sol em todos os dias, com aquele friozinho outonal, sem chuvas, sem hordas de turistas pelas ruas. O paraíso. Comi em lugares que gosto, conheci novos restaurantes, fiz um menu degustação no Alma (duas estrelas Michelin), outro no Cura (uma estrela Michelin), matei saudades dos vinhos portugueses que adoro. 

Paris-Brest

Na primeira manhã saí do hotel e subi as ladeiras em direção ao Miradouro da Graça, e durante longos minutos pus-me a contemplar a cidade que amo, sua luz sem igual, e talvez neste momento que tenha me lembrado de Borges e da gratidão aos olhos, sem os quais essa luz não existiria. Na noite do segundo dia, com aquele friozinho gostoso, saí do hotel e fui caminhando sozinho por cerca de meia hora até o restaurante em que iria jantar, o Essencial. Que lugar encantador! Uma ruazinha estreita no Bairro Alto, uma pequena porta que nada prenuncia. Salão pequeno e intimista, despojado, moderno, com vista para a cozinha aberta; poderia estar em Londres, Estocolmo, mas está em Lisboa, graças a Deus. A comida, criativa, é fortemente inspirada na escola francesa, mas com pratos originais e que abusam dos ricos ingredientes do mar e do campo portugueses. Vinhos bons a preços honestos, em uma proposta que combina perfeitamente com o menu. Iniciei com uma releitura de lobster roll, com brioche amanteigado, lavagante e caviar; champagne acompanha. Uau. De principal, vol-au-vent de lavagante e molejas, absolutamente perfeito, dos pratos mais fantásticos que comi este ano, o melhor do mar e da terra. Não estava preparado para aquilo, e realmente me surpreendeu. Para a sobremesa, minha favorita: Paris-Brest, este feito com pistache e yuzu, irretocável, sem nada a dever aos de Paris, acompanhado por um tesouro local: vinho do Porto branco.

Saí do restaurante, já muito feliz, em direção a um bar na Rua da Barroca, para me encontrar com um amigo brasileiro que lá me esperava. A noite estava apenas começando, e foi daquelas históricas. Sim, para minha sorte, ao que tudo indica, aqueles olhos azuis, após tantos anos, finalmente estão se dissipando no passado. Afinal, é disto de que trata este texto: de olhos e de amor.