Food&Arts
Fregola sarda com frutos do mar

Sob o sol da Sardenha

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Agora no mês de maio fiz uma viagem para a Itália para comemorar meu aniversário de 36 anos; há um bom tempo que viajar em maio tem virado uma deliciosa tradição para mim, e como bom taurino gosto de cultivar cuidadosamente hábitos que ao final das contas vão se tornando duradouros. O lado ruim é que isso é meio indistinguível de outra velha característica taurina, a teimosia, o que significa certa dificuldade justamente com a mudança de hábitos. Alguns deles, no entanto (assim enxergo em mim mesmo), por uma força que vem naturalmente de dentro, começam a mudar. E isso é bom. Gosto das mudanças que vêm de dentro, como uma força da natureza. As mudanças que ocorrem naturalmente. Respeito-as. As forçadas não me descem muito.

Acostumado a viajar sozinho na imensa maioria das vezes, nesta última viagem tive a alegria de ir acompanhado de um dos meus melhores amigos (se não o melhor, após esta viagem). Viajar sozinho, para mim, quase sempre implica em fugir de lugares remotos e com vida social pacata; ou seja, acabo quase que automaticamente escolhendo grandes centros urbanos que disponham de vida cultural intensa, ótima cena gastronômica, noites agitadas, festas, e assim por diante. A viagem solitária termina sendo deliciosamente preenchida por concertos, óperas, museus, restaurantes, bares, caminhadas noturnas por ruas desertas e silenciosas de bairros distantes (a vantagem de escolher certas vezes restaurantes alternativos e low profile é que a gente conhece bairros que jamais conheceria), passeios em ônibus e metrôs na companhia de estudantes barulhentos ou velhas senhoras voltando da feira, e um mar sem fim de descobertas, pequenos vislumbres, pequenas sensações, pequenas observações, que apenas o olhar atento de um viajante solitário é capaz de captar. A testa encostada no vidro frio da janela do ônibus em Paris, ou na de um trem no coração da Suíça, vou colecionando nos baús da minha memória centenas e centenas dessas pequenas impressões que me marcam desde muito jovem, pequenas coisas bobas que me dão orgulho e conferem algum sentido à minha vida. Inúmeras quinquilharias e penduricalhos, cenas toscas do cotidiano, mas, acima de tudo, recortes, fragmentos de momentos vividos em tantos países que já visitei. Jamais seria capaz de citar e enumerar todos. Um lago verdíssimo com uma montanha imponente ao fundo no meio da Suíça, ou a caminhada de duas horas sob a neblina, a neve e a chuva pela beira do Eiger naquele mesmo país. Uma velha estendendo a roupa numa sacada em Lisboa. Um cachorro vira-lata contemplando-me da frente de um casebre nos cafundós de Mendoza. Uma noite fria em Londres, em que após tomar uma garrafa inteira de Dom Pérignon e comer escargot em um dois estrelas Michelin situado em um dos mais fantásticos hotéis da cidade, subi no double decker e voltei para casa contemplando as luzes da cidade no andar de cima do busão vermelho, o estômago saltitante de alegria em borbulhas, a companhia de turistas indianos e chineses voltando das compras na Oxford Street.

Voltar para casa de ônibus ou metrô após jantares, já não muito sóbrio, aliás, é outra tradição que, consciente ou inconscientemente, venho insistido em manter. Final do ano passado, em Nova York, jantei no Benoit, tomei boas doses de champagne Ruinart, e não tive dúvidas em encarar na volta para meu hotel em Chelsea as longas escadarias do metrô mais próximo. Sempre dá certo. Mas voltando a essas pequenas cenas desimportantes. É como diz meu ídolo, Manoel de Barros:

 

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios

 

Voltando aos destinos que costumo escolher nas viagens solitárias. Não acabo fugindo muito das grandes cidades europeias. Londres, Paris, Madri, Lisboa, e dali para pequenas imersões nos interiores, mas sempre tendo as grandes cidades como uma âncora contra o tédio das horas vazias, uma garantia de que a viagem não transcorrerá puramente no mais absoluto silêncio (apenas parte dela). Algumas vezes em que me arrisquei, como em Mendoza, no ano passado, experimentei sensações conflitantes. Se por um lado me deslumbrei com paisagens incríveis e vinhos fenomenais, a escolha por hotéis no meio de vinícolas em uma viagem solitária foi questionável. Tomar sol à beira da piscina olhando a cordilheira dos Andes era bom. O quarto com uma banheira francesa deliciosa era bom. Mas, vejam só, um dos hotéis que escolhi, com apenas sete ou oito casas, uma muito distante da outra, estava com baixíssima ocupação. Tomava café da manhã (suficiente para alimentar um batalhão de afegãos famintos) com a vista da cordilheira e das vinhas, mas não conseguia escapar da sensação de que estávamos no recinto apenas eu e mais dois funcionários (e um silêncio mortal). À noite, no meio do nada, após voltar da visita às vinícolas, com o breu absoluto e o frio da noite do deserto mendocino, tinha duas opções: dormir o quanto antes, ou ficar vendo televisão no silêncio do quarto. Foi uma viagem ruim? Muito pelo contrário, guardo lembranças ótimas. Mas com o tempo cheguei à conclusão de que, alguns lugares, sobretudo os remotos e aqueles onde não há um bar ou balada para se escapar à noite, o melhor é estar na companhia de alguém. Mendoza é um deles. Voltarei, mas não sozinho. Cannes, um dos meus lugares favoritos no mundo, idem (um dia escrevo um texto sobre o que é estar sozinho em Cannes).

Pois bem. Quando no começo do ano passado reservei minha passagem para a Itália (maio é o único mês que tenho certeza que viajarei, então já faço as reservas com a máxima antecedência), sabia que chegaria por Roma, voltaria por Milão, e deixei o roteiro em aberto. Se eu fosse sozinho, obviamente (e mais uma vez) ficaria meio circunscrito a estas grandes cidades. E estaria tudo bem. Iria jantar em grandes restaurantes, teria tempo o suficiente para pegar o calendário de uma boa ópera ou concerto, iria a alguma balada de música eletrônica (minha nova paixão na vida de uns tempos para cá), e estaria tudo certo. E aí, esse amigo querido, de férias também no mesmo período, resolveu viajar comigo. Não perdi tempo. Nada de ficar em cidades enormes, então. Vamos para os lugares remotos que quase nunca tenho oportunidade de visitar e para os quais decidi não mais ir sozinho. Planejei o roteiro para a Sardenha.

A viagem foi maravilhosa. É uma pessoa de luz, iluminada, alto astral, bem-humorada, ao lado de quem é impossível estar triste ou ter tédio. Decidimos ficar na região da Costa Esmeralda (ou Smeralda, como dizem os italianos) e explorar bem as praias do local. Alugamos um carro no aeroporto, fundamental para percorrer os quase 80 km de costa por onde estão espalhadas as magníficas praias, com azuis e verdes dos quais jamais serei capaz de esquecer, e partimos para a região de Porto Cervo, onde estava a casa que alugamos.

A casa era magnífica. Um belo jardim muito verde a contrastar com o céu do mais puro azul da Sardenha. Do jardim, das espreguiçadeiras, passávamos algumas manhãs ou algumas tardes a contemplar a linda vista para a praia (e a casa tinha uma passagem privativa para a praia). Contemplei alguns dos crepúsculos mais lindos da minha vida. Lá pelas oito ou nove da noite, quando o sol começava a se esconder, o céu era um espetáculo de cores; um dia era em tons arroxeados, um dia em tons alaranjados, um dia em tons avermelhados, e o mar a espelhar isso tudo. No mercadinho próximo da casa comprávamos itens que fazem qualquer apaixonado por comida babar. Queijos, salames e presuntos locais, verdadeiramente únicos; ovos; pães, torradas, croissants, biscoitos. Às vezes uma massa para preparar no jantar quando estávamos cansados e não queríamos sair, um ravioli recheado de ricota, por exemplo; cobríamos com molho de tomate e adicionávamos pecorino sardo. Na prateleira do mercadinho, o vinho da noite, um honestíssimo vinho da ilha, desses que não chegam ao Brasil e são consumidos ali mesmo, nos jantares cotidianos dos moradores.

No café da manhã, ele que sempre se levantava mais cedo, preparava um banquete. Ovos mexidos, os pães, os queijos, suco, café. Os italianos colocam Nutella em tudo (vendida aos baldes), então eu também dava um jeito de enfiar Nutella em tudo no meu café da manhã, em biscoitos amanteigados, em torradas salgadas. Tudo levava Nutella. Comíamos na mesa da varanda, olhando o jardim e a praia, com o vento da manhã.

Lá pelas dez da manhã começávamos a nos preparar para a praia, arrumávamos as bolsas, subíamos no carro, e a cada dia íamos para uma praia diferente. Almoçávamos lá pelas três da tarde, no restaurante que estivesse aberto. Mais praia. Voltávamos para casa para ver o pôr do sol. E saíamos para algum restaurante lá pelas nove e meia ou dez da noite. Sim, o pessoal na Sardenha janta muito tarde; jamais cheguem às oito da noite.

Há um poema que recentemente me marcou muito por sua precisão, de Zetho Cunha Gonçalves, chamado As Dez Idades de Eros. Diz assim:

 

Os tempestuosos quinze anos

Os vinte turbulentos

Os trinta sedentos

Os destrambelhados quarenta

Os erráticos cinquenta

Os avançados sessenta

Os serenos setenta

Os exaustos oitenta

Os anestesiados noventa

Os humildes cem anos!

Fregola sarda com frutos do mar

De Eros, interessante, notem só, a pulsão imanente da vida: “os sedentos trinta”. Não tenho a menor sombra de dúvida de que estou vivendo os sedentos trinta. Mas acho emblemático que um dia marcante desta segunda metade do caminho que leva aos quarenta tenha transcorrido assim, da exata e mesmíssima maneira como transcorreu aquele 15 de maio de 2023, dia do meu aniversário de 36 anos. Lembro-me que comemorei os 35 em Madrid, almoçando num dois estrelas Michelin. Foi maravilhoso. Mas a entrada nos 36 foi um demonstrativo de como desejo que transcorra esta segunda metade: que sejam anos solares, de luz. Regidos pelo sol, pelo mar, pelo vento, pela música e pela beleza, as coisas que mais amo e admiro. Que sejam anos de festas, de viagens, de arte e amor. E naquela ilha de magia e sonho, abrindo os portais desses novos sedentos anos que se descortinam à frente, frescos como a alvorada, não tive dúvidas de que assim será.

Não teve almoço Michelin reservado com meses de antecedência. Mas teve leveza e teve alegria. Um café da manhã contemplando o jardim e o mar, a companhia de um cachorro que se achegou a nós (todos os dias vinha visitar-nos, espertinho, para roubar-nos o café da manhã, gordo como uma jamanta, os pelos dourados, acostumado por anos de hóspedes generosos, muita Nutella naquela barriga gorda). O sol dourando a pele na Spiaggia Capriccioli e na Cala Petra Ruja. O banho do mar e o vento. A companhia de um amigo maravilhoso. Os frutos do mar frescos com fregola sarda em um restaurante escolhido de última hora após a praia. O jantar no restaurante ao lado de casa, simples e sem reserva, os maravilhosos culurgiones típicos da ilha, com queijo pecorino sardo e tomate. Um vinho sardo, delicioso e honesto, uma variedade que só cresce lá. A lua na volta para casa.

Culurgiones

Feliz aniversário, Ulysses”, escreveu-me a dona da casa por WhatsApp. “Deixamos para vocês na porta da casa um licor artesanal que fazemos aqui para você tomar após o jantar”. E foi assim, com licor da Sardenha e contemplando a lua sobre o mar que aquele dia se encerrou.

Que seja leve.