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Varenikes (Mishiguene, Argentina)

Stream of consciousness

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Hoje, assim como tenho feito nos últimos dez anos, dei mais um plantão de 12 horas em pleno sábado. Meus altos boletos não se pagam sozinhos, afinal, e eu conheço pouquíssimas pessoas que trabalham no ritmo insano que trabalho (e amo o que faço). Entre as várias dezenas de exames que vi, um deles, o último, quase às sete da noite, chamou-me a atenção. Não sou mais uma criança, de modo que as coisas que me chocam hoje em dia costumam ser um pouco mais raras que há dez anos. Eu sempre gostei de ler poesia, filosofia, as grandes epopeias, as grandes peças, e de ver os filmes clássicos, as óperas… porque ali aprendemos muito sobre o que é a vida e todos os percalços que podem assaltar a breve experiência da conturbada passagem do homem sobre a Terra. Não há nada de novo sob o sol. Mas costumo dizer que a medicina mudou minha vida porque nada é mais didático para o homem do que o exemplo prático. Uma coisa é ler, outra coisa é ver ou viver. O que aprendi com a arte mudou e muda minha vida o tempo inteiro, mas o que aprendo com a medicina todos os dias me induz a reflexões das quais não poderia escapar mesmo que quisesse (e eu queria tanto poder escapar, em alguns momentos!), e que ao longo do tempo foram transformando minha forma de ver o mundo e as coisas que valorizo.

Dizem que o grande imperador Marco Aurélio tinha um escravo, e a única função deste mais humilde entre os homens era lembrar todos os dias ao mais poderoso entre os homens, sobretudo nos momentos de glória: memento mori. Lembra-te de que és mortal. A medicina tem sido meu memento mori. Ver coisas tristes todos os dias, algumas beirando o absurdo do inacreditável e as mais amargas ironias, foi-me ensinando a valorizar as coisas pequenas. Quanto mais trivial, boba e pequena aquela coisa, tanto mais feliz eu estou. Respirar. Andar. Não ter dor. Sentir o gosto de um morango. Enxergar. Ouvir uma música e sentir alegria. Correr. Suar. Rir. Sentir prazeres e arrepios de gozo. Ter fome. Comer. Dançar. Presto atenção nelas como se meus sentidos estivessem em permanente estado de excitação. E isto faz com que me sinta vivo o tempo todo. Nada pode ser pior que a morte em vida. Há pessoas tão jovens e saudáveis, mas que estão mortas, anedônicas, inertes, desperdiçando o bem mais precioso.

À beira da morte que se vê iminente, tudo o que muita gente quer são mais alguns dias, algumas semanas. Aceitam tratamentos dolorosos, cirurgias caras, quimioterápicos de valores astronômicos. E não o fazem porque estão prestes a sair dali para comer uma lagosta no Freddy, ou correr no parque ao cheiro da relva recém-molhada pelo orvalho da manhã, ou ver a neve cair lentamente sobre a montanha, o sol se pôr sobre um lago. Fazem-no muitas vezes apenas para estarem vivas, ainda que não podendo mais respirar, ainda que não podendo mais gozar, ainda que não podendo mais sentir arrepios de prazer ou o gosto dos morangos, ainda que não podendo mais urinar ou tomar água, ainda que com tubos, sondas e fraldas. Ainda que não estejam mais vivas. Fazem-no porque querem se manter ligadas por um fio (ainda que por um tênue fio), ao grande e belo milagre que é a plenitude da vida, a ilimitada plenitude da vida, agora obviamente inalcançável.

Quando alguém próximo a mim vem se queixar de problemas do dia a dia, alguns graves (mas que não envolvem estar entubado à beira da morte numa UTI), e eu amo essa pessoa, costumo tentar convencê-la de como ela é sortuda por estar com alguma saúde, e de como de repente tudo fica menos feio e impossível após essa constatação.

Há muita coisa que não entendo sobre o mundo. O motivo pelos quais algumas coisas acontecem. Algumas sortes, algumas injustiças. Como não acredito em coisas sobrenaturais e sou um escravo da ciência, coloco-as na esteira do acaso. A distribuição das sortes e dos azares segue uma curva de Gauss, e como estamos distribuídos nela depende do imponderável acaso. Mesmo assim, sofro e choro quando vejo o extremo da curva, o extremo do azar, o extremo da injustiça, o extremo da dor. E, sim, o lado bom disso, é que por eu não ser o mais inteligente dos homens, a vida me ensina todo os dias pela repetição, memento mori, memento mori, memento mori. A criança de 3 anos, inocente, morrendo de um tumor cerebral, tubos por todos os lados, sofrendo dores excruciantes. Isso faz meu coração parar. Por quê, por quê, por quê, meu Deus?

O último caso que vi hoje no plantão é o de um homem de 30 anos. O corpo está perfeito em cada órgão, do cérebro ao último dedinho do pé. Exceto em um: pulmão. Um sarcoma agressivo consumiu um dos pulmões, expande-se dia após dia com velocidade impressionante para cima e para baixo, para os lados, comprime o coração, invade a parede torácica. É um sábado à noite, ele tem 30 anos, a cabeça está boa, as pernas estão boas, mas ele não vai sair hoje. A respiração vai se tornar cada dia mais difícil e em poucos dias terá de ser entubado. Não há cirurgia. A quimioterapia vai adiar em poucas semanas o inevitável. Ele tem 30 anos, é sábado à noite, e dói meu coração saber que este talvez seja um de seus últimos sábados. Eu tenho visto isso ao longo dos últimos anos. E jamais conseguirei me acostumar. Jamais conseguirei entender. Jamais conseguirei aceitar. Por que ele, por que com 30 anos? Curva de Gauss, diz meu cérebro, e meu coração responde com ódio visceral pela injustiça do mundo: às favas sua maldita curva de Gauss. O mundo é belo, o mundo é injusto, o mundo é triste, o mundo é feliz, o mundo pode ser tantas coisas.

Eu não sei onde estarei daqui a algumas horas, dias, meses ou anos. Não sei qual meu lugar ou distribuição na curva de Gauss. Mas a vida insiste em me ensinar pelo exemplo diário (sim, insisto again, ela sabe que sou bobo e burro e teimoso) que cada dia pode ser o último. Então eu respiro e sou feliz, eu olho a avenida pela sacada e sou feliz, eu tomo um vinho e sou feliz, meu coração dá um salto com uma canção de Schubert na Sala São Paulo e sou feliz, eu beijo alguém e sou feliz.

Introdução ao cardápio (Mishiguene, Argentina)

Esses dias eu estava na Sala São Paulo, e uma bela melodia judaica da Rapsódia Hebraica de Ernest Bloch de repente me transportou a um restaurante judeu de Buenos Aires, o Mishiguene. Eu comecei a dançar na cadeira com a cabeça em parafuso, sentindo a melodia judaica, lembrando daquela distante e solitária noite na Argentina, uma bela e fresca noite, e as comidas tão gostosas que nunca havia comido antes, uma sucessão de pratos deliciosos que me foram sendo apresentados em sequência, e de repente sou tão grato e feliz por ter existido essa música, por ter havido Ernest Bloch, por haver canções judias no mundo e por haver judeus no mundo, e por eu ter estado na Argentina, por eu ter vivido aquilo, por eu ter sentido o gosto daquela comida, e por minha cabeça fazer essas conexões tão inesperadas, e é isso que faz a complexidade do mundo, os universos que são todas as vidas, e que fantásticos universos que existem por aí que jamais conheceremos. E de repente me dá vontade de ir de novo para Buenos Aires e comer a comida do Mishiguene, e viver aquilo de novo, afinal viver é tão urgente. Uma simples música me fazendo ter vontade de comer. Relevem. Eu sou Touro com ascendente em Touro. Só sei comer.

Não sei como divaguei até aqui. Mas enfim. Sete horas da noite. Desligo o computador, mais um plantão ficou para trás, outros tantos virão, mas o homem de 30 anos me acompanha no elevador, na rua, no carro de volta para casa. Deus, eu sei que nunca acreditei muito, que não sou fiel, um incrédulo, um grande pecador, o último com direito a pedir qualquer coisa. Mas que ele fique confortável dentro do possível, que não sinta tanta dor, que possa respirar sem aparelhos pelo tempo que leve para se despedir do mundo.

Não tenho grandes planos para hoje. Vou a uma festa com dois amigos. Vamos beber e dançar até as seis da manhã. Podem não ser os maiores planos do mundo. Mas estarmos os três bem, vivos, bebendo e dançando, parece ser motivo mais do que suficiente para sermos gratos pela noite de hoje e por compartilharmos esse pequeno fragmento no tempo e no espaço. Que esta noite não seja em vão.

Viver é urgente.

Varenikes (Mishiguene, Argentina)