Food&Arts
Antônio
Cordeiro

Deus abandona Antônio

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email
Couvert

Noite alta, ar fresco e parado. O profundo silêncio da madrugada, vez ou outra recortado pelo latido de um cão, um carro solitário que passa ao longe. Desde a sacada do meu apartamento contemplo a avenida lá embaixo, uma vista com que me acostumei nestes últimos sete anos, uma moldura que impassivelmente e fielmente testemunhou incontáveis cenas dos meus trinta anos: momentos de alegria com os amigos e a família, belas taças de vinho, o início e o fim de um relacionamento, beijos na madrugada com infinidades de rostos passageiros dos quais já não me lembro, choros solitários, inúmeras leituras. Num mundo de tantas incertezas, torna-se às vezes um alívio contar com o conforto das coisas costumeiras, as que estão ali há tanto tempo, firmes, seguras, imutáveis. Neste conforto, entretanto, muitas vezes indistinto de um vício, reside certa armadilha, a da estagnação, a do morrer-se em vida. Após sete anos neste apartamento, e dez em Moema, decidi-me mudar de bairro. Arquitetei a coisa toda em pouco mais de dois meses e, da próxima vez em que sentar-me para escrever estas linhas, já estarei com minha escrivaninha alocada nos Jardins. Penso nas coisas velhas que estou perdendo, penso nas coisas novas que irei ganhar. E este é o motor que nos impulsiona a partir sem olhar para trás; não que exista em nós a coragem que faltou à mulher de Ló. Apenas aprendemos, acostumamo-nos também, a amar as despedidas, pois que há nelas uma beleza, a do princípio do desconhecido.

Antônio
Raviolone de gema e ricota

A primeira vez que li este poema de Konstantinos Kaváfis foi às vésperas de dormir, durante uma viagem sozinho à Suíça. Estava num chalé em um vilarejo montanhoso de dois mil habitantes. Fazia frio, chovia muito forte e lembro-me que após o jantar passei longos momentos à janela do quarto, no escuro, observando a chuva castigar as montanhas lá fora. Voltei para a cama, liguei a luz de cabeceira, e como sempre faço antes de dormir, li um pouco. E li:

 

Quando bruscamente, nas trevas da noite,

Ouvires passar o tropel invisível das vozes puras,

O coro celeste das sublimes harmonias,

Abandonado definitivamente pela fortuna,

Desfeitas em pó as últimas esperanças,

Esvaída em fumo uma vida de desejo.

Ah! não sucumbas lastimando um passado

Que te traiu, mas como um homem

Que se prepara há muito tempo,

Despede-te corajosamente

De Alexandria que te abandona.

Não te deixes iludir e não digas

Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos,

Deixa as súplicas e os lamentos para os poltrões,

Abandona vãs esperanças.

E como um homem que se prepara há muito tempo,

Resignado, altivo, como te compete

E a uma cidade como esta,

Abre a janela e olha para a rua

E bebe a taça inteira da amargura

E a derradeira embriaguez da multidão mística

E despede-te de Alexandria que te abandona.

 

Antônio
Cordeiro

Kaváfis escreveu este magnífico poema obviamente fazendo menção ao final da Batalha de Áccio, em que o exército de Cleópatra e Marco Antônio sucumbem ao de Otaviano, presumindo-se daí que o deus de Antônio (Dionísio, até onde sabemos) o havia abandonado, levando-o a perder tudo o que ganhara em uma vida de batalhas. Lembro-me de que pensei, poucos instantes de dormir, muito impactado pelo poema, que no dia seguinte iria embora da cidadezinha, e que felizmente não precisaria, como Marco Antônio, fazer uma despedida muito dolorosa, apesar dos momentos agradáveis que ali passei (incluindo-se aí uma trilha sob a chuva aos pés de uma das maiores montanhas do país). Este poema retornou-me agora à cabeça na sacada da minha casa contemplando a noite, sabendo desta vez que esta despedida será um pouco mais impactante.

Mil-folhas

O que se sucedeu na Suíça, entretanto, posso contar nestas linhas, e é isto que na verdade vim fazer aqui. Cheguei a Zurique e almocei em um restaurante maravilhoso, o Ristorante Ornellaia, que gostaria de recomendar, sobretudo para os amantes de vinho, como eu. Trata-se de uma empreitada da famosa vinícola Ornellaia em Zurique. O restaurante situa-se numa travessa da famosa Banhofstrasse, no local que funcionava como sede de um antigo banco. O interior é sofisticadíssimo, maior em comprimento do que em largura (um restaurante  de salão alongado, eu diria, usando minha classificação particular), com paredes altas e elegantes em pedra clara. A cozinha é aberta para o salão, e de praticamente todas as mesas é possível ver os cozinheiros em ação. A minha ficava literalmente no meio do salão, a dois passos da cozinha, e passei bons momentos assistindo à elaboração de cada prato.

São duas as grandes atrações do restaurante. A primeira, obviamente, é a oferta vastíssima de safras e opções de rótulos da vinícola toscana, que podem ser degustados em taças ou garrafas. Optei por ir combinando diferentes opções de taças em harmonização com os pratos do meu almoço. A segunda é a qualidade da cozinha, fabulosa. Desnecessário mencionar toda a parafernália que acompanha o show, toalhas impecáveis de linho branco, belas porcelanas e talheres, atendimento primoroso, etc.

Spresso, sfogliatella, tiramisù

No couvert, os excelentes pães de fermentação natural acompanham fatias de prosciutto di Parma fatiadas na hora, com bom azeite, sardella e manteiga. De entrada pedi um raviolone recheado de ricota e gema de ovo, com trufas negras, que estava uma coisa absolutamente divina. De principal, um cordeiro de almanaque, ponto de execução da carne sublime, maciez total. Reparei que não me perguntaram o ponto em que eu desejava o cordeiro, o que, a meu ver, é justíssimo. Cordeiro só tem um ponto, que é o da perfeição, nada mais, nada menos, e quando a casa entrega o ponto da perfeição, como foi o caso, obviamente torna-se desnecessário pedir o palpite do cliente (a boa gastronomia é soberana). O jus do próprio cordeiro, suculento, intenso, espesso, vontade de mergulhar no prato. A sobremesa foi um mil-folhas excelente, com sorvete e creme de frutas vermelhas. Antes de sair para aquela tardezinha gostosa de outono, um belo café expresso com mais pequenos mimos (sfogliatella e tiramisù).

Não sei se foi o lindo ambiente, a comida maravilhosa, as várias taças de Ornellaia que foram descendo uma atrás da outra tão facilmente, os docinhos deliciosos. Só sei que saí em puro êxtase do lugar, amando a vida, amando o mundo, amando todas as coisas, querendo abraçar cada suíço da Banhofstrasse, mesmo os mais fechados. Comer maravilhosamente bem deixa assim este taurino. Não havia sido naquele dia que Dionísio me abandonara. Vitória.