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la dame de pic

La Dame de Pic

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Pão e manteiga

Londres é uma das minhas cidades favoritas no mundo; morei lá na época em que fiz meu fellow, oportunidade em que conheci os mais recônditos cantinhos da cidade e fui-me apaixonando por cada um deles. Voltei em outras ocasiões, e ainda hoje, vez ou outra, pego-me acordando com uma inaudita saudade das suas ruas, dos parques, da comida, com vontade de marcar impulsivamente uma viagem não prevista apenas para me refestelar com sausage rolls, beef Wellington, hot fudge chocolate pudding, queijo Stilton; andar sem rumo por Knightsbridge ou pelo Hyde Park; ver um concerto na Wigmore Hall ou uma ópera na Royal Opera, em Covent Garden. Não descartei por completo ainda a ideia de fazer por lá meu segundo pós-doutorado, antes de ir para a livre-docência, a qual adiaria um pouco. Para que ter pressa? Há alguns anos, meu metódico eu interior, que trabalha com metas (e impeliu-me, por exemplo, a fazer o doutorado junto com a residência), jamais aceitaria que a livre-docência ficasse para depois dos 40. Hoje, aproveitar cada minuto desta segunda metade dos trinta parece-me muito mais urgente e importante.  Sim, deixemos Londres no radar próximo.

Gnocchi

Este pequeno preâmbulo é para poder abordar o restaurante de que trataremos hoje, e que é muito especial para mim, entre as mais de cinco dezenas que já visitei por lá. Trata-se do La Dame de Pic, duas estrelas Michelin, situado no magnífico hotel Four Seasons, uma linda e imponente construção histórica na Ten Trinity Square, bem próxima à Tower of London e Tower Bridge.

Anne-Sophie Pic é a chef mulher mais estrelada do mundo (em termos de Michelin) e herdeira de uma longa tradição culinária (o avô inventou um lagostim gratinado que fez história na França da década de 30, e o pai, Jacques Pic, deu continuidade ao restaurante da família, Maison Pic, em Valence, França, com duradouras três estrelas Michelin). O império culinário da senhora de Pic estende-se para além de Valence, englobando Paris, Londres, Lausanne. Quando comi no de Londres o restaurante acabara de ganhar a segunda estrela, de sorte que a expectativa era alta. E foi um magnífico almoço.

Vieiras

Fiz um menu pareado com vinhos, todos brancos, sendo dois interessantes exemplares do Rhône e um da Alsácia, além de um Moscatel de Málaga na sobremesa. O pão estava fora de série (sempre saio de Londres com a impressão de que lá só existe pão perfeito; em todos os lugares é uma coisa de casca maravilhosamente crocante, massa quentinha de fermentação natural, etc.); mas o detalhe que me cativou foi o capricho com que esculpem a manteiga em forma de rosa, símbolo do restaurante: muito, muito elegante e perfeito. A preocupação com as origens do produto, o terroir e os produtores é uma premissa fundamental, de modo que todos os pratos são muito bem descritos em termos de ingredientes e origens.

Apresentação do mil-folhas

O primeiro prato foi um gnocchi de queijo (uma variedade oriunda dos Alpes Suíços), com cogumelos selvagens e seu consomê, e emulsão de pimenta Voatsiperifery; delicioso, e de uma delicadeza ímpar. A seguir, para continuar no terreno das delicadezas, vieiras escocesas com cenoura em diferentes texturas. O prato principal foi de cair o queixo e me deixou saudades: costeletas de leitãozinho, extremamente suculentas e macias, com purê de maçãs e uma redução de marmelo levemente apimentada. Verdadeiro êxtase.

Na sobremesa não tive dúvidas e fui na mais famosa da chef, o millefeuille de baunilha do Tahiti com espuma de pimenta Voatsiperifery (que, a título de curiosidade, não é uma pimenta verdadeira como conhecemos, mas uma variedade oriunda de Madagascar, muito fresca e doce, amadeirada e floral, que vai muito bem com carnes e doces). A apresentação é tão bonita, em forma de perfeito cubo branco, que causa um pouco de dó dar a primeira garfada e destruir a obra de arte; mas, pelo bem do meu estômago, cometi o pecado.

Interior do mil-folhas

Em êxtase, daqueles raros, que só acontecem quando uma refeição é perfeita do início ao fim nos mínimos detalhes, cruzei o belíssimo saguão do hotel e em poucos segundos estava misturado à multidão, engolido pela tarde nublada. Coloquei meu fone de ouvido, pus-me a ouvir Handel (um alemão apaixonado pela Inglaterra e naturalizado cidadão inglês por ninguém menos que seu amigo e patrono, o rei George I) e fui caminhando lentamente até a Tower Bridge. Ah, as memórias…