Food&Arts
Caldo à base de fígado, com macadâmia e sansho

Schlage die Trommel

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Atum

Nunca fui e não me considero um grande conhecedor da culinária japonesa. Conheço um pouco de comida, contudo, talvez o suficiente para depreender da observação à minha volta que a maioria dos meus compatriotas (às voltas com rodízios em que imperam peixes de qualidade duvidosa, nem sempre os mais frescos, com sabores soterrados por litros de shoyu e azeite trufado, cream cheese, e toda sorte de parafernália ditada pela livre criatividade do dia), quando saem à noite invariavelmente para aquele seu “japa” de estimação (não gosto do termo, acho rude e indelicado, dado o nível de seriedade e atenção aos detalhes que os japoneses, dos mais simples aos sofisticados, imprimem à sua culinária), tampouco sejam grandes conhecedores. De fato, durante boa parte da minha vida, o que conhecia como comida japonesa em restaurantes de São Paulo, eram verdadeiras catástrofes que nunca me agradaram: peixes de procedência duvidosa mascarados por sal, açúcar, gordura, acidez; insossos salmões de cativeiro aos montes; frituras em óleo velho. Texturas bobas, crocâncias pouco criativas, ausência de nuances, uma massificação repetitiva e sem fim. Sim, já falei do cream cheese, mas volto a repetir: como é possível? Por muitos anos, mantive-me afastado da dita culinária “japonesa”. Quando me convidavam, achava mais fácil simplesmente recusar educadamente e dizer que não aprecio esse tipo de cozinha.

Vieira

Aos poucos, todavia, sozinho e timidamente, comecei a mudar. Se eu encontrava prazer jantando sozinho em restaurantes franceses e italianos da minha zona de conforto, por que não explorar outros ares? Não contei nada para os meus amigos. Eles não entenderiam os balcões que passei a explorar sem eles. A vida, afinal, sua beleza, reside em sair, olhar, experimentar, aprender, ouvir, entender, deixar que toda a complexidade e riqueza do mundo possam nos invadir. Para um taurino teimoso isso nem sempre é tarefa fácil, mas sempre me forcei a isso. Embora aprecie demais certo lado intelectual e abstrato da existência, meu eu poético, sentimental, terreno, diz-me que as sensações valem mais. Esses dias li um poema de Heine que me deixou com um risinho de canto de boca: Schlage die Trommel und fürchte dich nicht,/ Und küsse die Marketenderin!/ Das ist die ganze Wissenschaft,/ Das ist der Bücher tiefster Sinn. A tradução: Bate o tambor e não te assustes,/ E beija a garota da cantina!/ Esse é todo o conhecimento/ E a lição mais profunda dos livros.

Unagui

Heine (a quem Borges e Nietzsche chamaram de o maior dos poetas alemães, e a quem Stevenson considerava o mais perfeito dos poetas) foi aluno de filosofia do próprio Hegel, entre outros feitos muito maiores que este. Encaro este poema como um convite à dança, à música, ao ritmo, à festa, ao entusiasmo, à diversão, à coragem. Desfrutar o que a vida tem de melhor, toda sua beleza, desfrutá-la de peito aberto e com bravura sobre o mar de perigos, passar-lhe a perna, roubá-la com força, tomá-la com resolução, puxá-la pelos cabelos. Já dizia Lou Andreas-Salomé (já citei uma vez aqui): A vida te dará poucos presentes, acredita: se queres uma vida, é preciso que a roubes. Esta frase nunca saiu da minha cabeça. Ainda sobre a coragem: estes dias, na Sala São Paulo, o grande pianista Sir András Schiff, antes de interpretar as Davidsbündlertänze de Schumann, disse-nos que a peça, dicotômica, era uma batalha entre os dois lados da alma poética de Schumann, Eusebius (sensível e poético) e Florestan (impetuoso e dramático). Sir András nos explica que ao final Eusebius vence. Quando fui ler mais sobre a obra, descobri que Schumann adicionou como prefácio à obra estes versos de um antigo ditado alemão: Em toda e qualquer idade, a alegria e a tristeza se misturam. Sê piedoso na alegria, enfrenta a tristeza com coragem.

Em diferentes épocas, com diferentes vozes, esses fantasmas do passado nos dizem sempre: coragem! Música! Beije a garota da cantina! Aprecie os prazeres do dia-a-dia. Entendo que Heine queria nos dizer isso: vejam só, eu aprendi com o próprio Hegel, e posso dizer-lhes que todos esses livros, toda essa complexidade, todo esse conhecimento intelectual, no fundo aspira a uma só coisa: simplicidade, prazer, sensações. Alberto Caeiro parece ter entendido bem isso. Faço disso meu mote.

Caldo à base de fígado, com macadâmia e sansho

E foi com este espírito que me nutre todos os dias, que um belo dia, há muitos e muitos anos, saí de casa para jantar e conheci o chef Tadashi Shiraishi, em um omakase no Kinoshita, Vila Nova Conceição. Sentei-me ao balcão, e do começo ao fim, fui surpreendido pela experiência, que me introduziu de vez ao universo do que hoje considero a culinária daquele país. A saudação japonesa com que se é recebido no início do jantar. O cuidado com os ingredientes, procedência, frescor, que me permitiram ver que o rigor desta culinária em nada difere do dos grandes chefs franceses. A possibilidade de harmonizar os pratos com saquê, mas também com vinhos brancos, champagne, mantendo-me ali por um fio na minha querida zona de conforto. Aos poucos fui relaxando e me deixando envolver pela experiência, e ao final estava tão à vontade quanto num Michelin de qualquer culinária do mundo mais habitual para mim (e sim, de fato, o Kinoshita tinha uma estrela à época).

Vieira, alho-poró, eryngii, Tulha

Fiquei com aquilo na cabeça. Veio a pandemia, e o Tadashi começou um projeto lindo de entregar na casa das pessoas uma caixa com comida japonesa do mais alto nível, o omotebako, com toda a logística necessária para manter a qualidade, textura e sabores dos delicados ingredientes. Faltava um balcão, um lugar onde pudéssemos nos sentar e vê-lo novamente na nobre missão de nos ensinar da melhor forma o que é, de fato, uma cozinha japonesa de alto nível. E a resposta veio com o restaurante, o Kanoe, homenagem à sua avó, que o incentivou a seguir carreira no campo da gastronomia.

A experiência é encantadora. No melhor estilo speakeasy, somos informados do endereço do restaurante apenas no dia do jantar (a entrada é por uma portinha insuspeita). Há uma série de exigências: pagamento antecipado via PIX, não reembolsável; serviço de 15% e bebidas pagos no dia do jantar, também apenas via PIX. O jantar, com 3 horas de duração, é servido com todos ao balcão, e atrasos não são tolerados (os exclusivos oito convidados da noite iniciam as refeições pontualmente e sincronizadamente). Restrições a itens incontornáveis dessa culinária (peixe cru, arroz, shoyu) obviamente não podem ser acomodadas. Não há sucos e refrigerantes. Perfumes fortes devem ser evitados. Isso pode afastar, em tese, um bom número de pessoas. Mas não quem entende que uma experiência de alto nível não pode ser atingida sem certa atenção ao rigor e formalismos. E, se o Kanoe exige de um lado, entrega muito de outro, do contrário não estaríamos aqui.

Tofu, maracujá

A começar do ambiente clean e moderno, em tons claros. A oferta de saquês, vinhos e cervejas pensados para o menu. A interação cara a cara entre cozinheiro e cliente, prato a prato (são mais de 15 etapas!), com o ingrediente no centro do palco. A apresentação do arroz da noite, e a explicação sobre a evolução de sabores, consistências e texturas que terá ao longo da noite, o racional por trás da combinação com cada peixe. A entrada foi um belo ouriço-do-mar com caviar, seguida por uma sucessão de sushis feitos com diferentes partes do atum Balfegó, de sabores, intensidades e cores variáveis. Nuances. Uma seleção de pescados sazonais, e as explicações sobre de onde vêm, o que esperarmos em boca. Uma vieira que nunca comi igual na vida, uma vieira japonesa levada para os Estados Unidos para produção em maior escala, e com um sabor único, intenso, gorda, suculenta, puro mar (diferente das vieiras escocesas sobre as quais escrevi na coluna passada, delicadas, diferentes, também boas). Os temperos são delicadíssimos, com objetivo de elevar o peixe ou ressaltar suas qualidades, jamais encobri-las; tênues óleos da casca de um limão siciliano, coisas sutis e divinas, nada além de um pequeno toque: o peixe é o centro. O delicioso unagui (enguia) que fica um tempo na grelha enquanto vamos provando os peixes. Depois, dois pratos de se tirar o chapéu: um intensíssimo caldo à base de fígado, com macadâmia e sansho, que misturamos ao arroz numa espécie de primoroso risotto à japonesa; e uma espécie de sofisticado harumaki, delicadamente recheado com vieira, alho-poró, eryngii (espécie de cogumelo) e coberto com raspas de queijo Tulha. As sobremesas ficaram por conta de um delicado creme aerado de tofu cujo nome não me recordo, sobre uma pâte sablée, com recheio de maracujá; e um sorvete de baunilha (o chef, versátil, após dar uma aula de sushis, dá uma lição de como montar uma quenelle perfeita), coberto com pó de café.

Sorvete de baunilha

A conta no Kanoe não sairá barata, e seria impossível que fosse, dada a qualidade dos ingredientes, o nível de cuidado com que são trabalhados e a exclusividade da experiência; mas, a julgar pelas pessoas à minha volta fazendo cálculos de quantas vezes poderiam voltar por ano se sacrificassem seus “japas” mais baratinhos do dia-a-dia, não foi só a mim que ele cativou.